domingo, 15 de agosto de 2010

8:15
































É incrível que ainda possamos ser mantidos assim tão acordados à noite por um momento que ocorreu à mais de 65 anos. A aura tão pacífica de Miyajima, ilha da Itsukushima Shrine, com seus os portões vermelhos dentro de água, é tão extensa que somos abafados por sua tranquilidade muito antes de lá dar-mos um primeiro passo. A vegetação extensa e altamente preservada em redor e a presença do mar são claros indícios de uma comunhão com a natureza incrivelmente cuidada, mas nunca esperei que os veados passeassem tão livremente dentro da cidade, abordando as pessoas à procura de comida ou mimos; aparentemente com uma predilecção por papel que leva a situações hilariantes com turistas distraidos segurando mapas ou nos bolsos de trás.

Nem um calor impiedoso nos impediu de explorar uma das ditas "três vistas do Japão" e suas delícias: ostras grelhadas, uma espécie de enguia em molho agridoce e doces fritos por fora ainda me causam fome (leia-se gula) ao recordar.
Hiroshima é uma cidade maior do que esperava. Dentro das enormes avenidas que a atravessam sinto que tenho mais espaço para respirar do que em Tokyo, que aqui me parece autenticamente claustrofóbico. A grande concentração de pessoas encontra-se, como seria de esperar, nos grandes monumentos e museus dedicados à memória daquele dia.

"6 de Agosto de 1945. O céu estava claro, sem uma nuvem à vista". Todos os relatos que vi e ouvi de sobreviventes da bomba atómica lançada aqui começam assim, como que para enfatizar que mesmo um inferno não demora mais de um momento para surgir.

"Estava sentado no banco de um jardim e uma libelinha pousou ao lado. Estendi minha mão para alcançá-la, e então..."

Estas palavras encontram-se na entrada do grande museu memorial pela paz, perto de um dos relógios parados às oite e quinze da manhã, momento que a bomba detonou em exposição. O museu é perto do monumento homenagiando Sadako Sasaki, a rapariga que tornou origami um símbolo da paz e morreu de leucemia devido a efeitos que ainda persistiam da radiação da bomba.

Hiroshima é uma cidade dedicada à paz, apesar da memória da guerra presente.
Tivemos a imensa fortuna de presenciar duas palestras: uma de Steve Leeper, um autêntico cruzado mundial pela não proliferação e desmilitarização de armas nucleares e outra de uma sobrevivente da bomba atómica. A primeira confronta-nos com a situação global, de que como apenas uma mera dúzia de bombas de hidrogénio lançadas pode causar efeitos devastadores globais, mesmo se não for um inverno nuclear é o bastante para destruir completamente larga parte dos cestos de pão do planeta como Canada e partes da Sibéria. Diz-nos a más e as boas notícias, com a esperança renovada pela corrente administração americana, acordos conseguidos no médio oriente com o Egipto a liderar um pedido de uma zona livre de armamento nuclear, e como a nossa pequena parte pode um dia importar o bastante. Traz-nos para mais perto da fonte de luz, e sinto-me crescer por minha sombra no mundo atrás, como se pudesse agora agarrá-lo com minha mão. No fundo, a responsabilidade perante tudo faz-me parecer, sentir maior no mundo.

Na segunda palestra, no dia seguinte fui pego de surpresa. Talvez devido à vitalidade e professionalismo que a senhora aparentava disfarçava o horror que viríamos a escutar. Devo dizer que o próprio Dante Alighieri não teria conseguido retratar um horror de um inferno assim mesmo que tivesse cem anos para escrever sua obra. Uma coisa é entender a ciência por trás, uma reacção em cadeia, libertação de energia, estatísticas, factos frios, o número de mortos, as consequências da contaminação da radiação...Outra é ouvir da boca de alguém como um céu azul se tornou negro num instante, alimentado por fumos tão negros de incêndios que deflagraram num segundo. Que caia chuva negra espessa. Que as pessoas que não forma mortas pelo impacto vagueavam, sem se perceber se eram homens ou mulheres, nus, com a pele de seus braços suspensas pelas unhas e cotovelos. Que gritavam por água. "Água, por favor", diziam, mas o governo dizia que eles morreriam do choque se bebessem, por isso recusavam. que os viam morrer à mesma, cobertos de queimaduras, atirados ao rio, de cabeça baixa. Milhares de cabeças baixas à beira rio, de pessoas que tinham ido beber água ao rio. Que ainda se lembrava da sensação escorregadia de pisar essas camadas de pele que tinham se soltado dos corpos como lama por uma esponja com água. Do cheiro. O terrível cheiro da morte. Dos insectos que todos os dia apareciam nas suas feridas. E da forma como o seu pai a tinha encontrado, por acaso. E do abraço que lhe dera. Um abraço que viria depois de ter passado dias. esperando encontrar sua filha viva num inferno. E de como esse abraço viria a tomar a sua vida um mês depois, pois o pai que tão desesperadamente saiu de casa para procurar sua filha tinha sido demasiado exposto por ter passado os dias a virar os corpos mortos, procurando o rosto de sua filha. Esta senhora, ela própria vítima recuperada de um cancro, felizmente é muito mais energética do que possam pensar, apesar de ter conseguido ter dois filhos, um com problemas mentais e outra também ela vítima de um cancro. Dizem que só daqui a cem anos poderemos realmente ver as consequências dos efeitos de toda a radiação na população.

Após o relato, uma colega japonesa perguntou se a senhora sobrevivente queria deixar alguma mensagem às futuras mentes cientificas ali presentes. Foi a primeira vez que se emocionou ao ponto de deixar tremer a sua voz. Que aprendam algo com o horror cometido e que se lembrem sempre dele, é o suficiente. Que saibam que existem coisas que são imperdoáveis entre seres humanos.

A verdade é que após a rendição da Alemanha e Itália,o Japão já tinha acordado um rendição condicional, garantindo apenas a salvaguarda do imperador. Essa rendição foi recusada, e pouco tempo depois, sem aviso prévio, foram lançadas as bombas atómicas. É engraçado que os japoneses jovens com quem falo sobre isso tentam justificar um pouco o uso das bombas contra o Japão, dizendo que o Japão é uma vítima mas também agressor contra outros países asiáticos e os Estados Unidos. Documentos oficiais e réplicas em exposição no museu mostravam o secretário geral dos Estados Unidos dizendo que estava algo receoso que devido ao facto da "força aerea possa ter arrasado o Japão completamente o Japão ao ponto de não restar um local com o cenário de fundo adequado à demonstração da força total da bomba", ou que os "tremendos custos do desenvolvimento da bomba não seriam justificados".

É difícil explicar o que senti durante tudo isto, mas é fácil de imaginar e pelo menos fazer uma ideia. A guerra é um conceito extremamente difícil para a maior parte de nós, e estar assim tão perto das grandes cicatrizes mundiais que temos enquanto espécie humana é demasiado para conter.
Surpassa-me, transcende-me tudo isto. É uma tempestade negra em meu redor enquanto tento conter o máximo de água em minhas mãos, olhando o céu acima.
Fotos:
1- Relógio que parou no instante em que a bomba detonou
2- 1000 gruas de origami que todos fizemos para colocar junto ao monumento de Sadako Sasaki
3- Monumento de Sadako Sasaki
4-A cúpula da bomba atómica, Genbakudan dome mae, um célebre edifício que sobreviveu parcialmente
5-O portão vermelho no mar junto ao templo em Miyajima
6 - Vista de parte da cidade de Miyajima, oposto ao mar
7- Um dos muitos amigáveis bambis que circulam por lá.

3 comentários:

  1. O teu proximo post deveria chamar-se "09:52" a hora em que deixaste de postar cenas, BAKA! keep the stories coming :P

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  2. Haha!Boa; tenho andado super ocupado, mas este fim de semana vou a kyoto! por isso segunda ja vou ter fotos!

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  3. Ora viva!!

    Epa.. So tenho uma coisa a dizer: Brutal!
    So agora dei uma vista de olhos pelo teu blog mas fico contente por isso tudo estar a correr bem!

    Espero que aproveites esta etapa da tua vida ao máximo! ;)

    Abraço
    ricardo pedro

    P.S. - Sempre vai haver epoca especialissima em dezembro !

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